A primeira vista parece uma comparação simplória, porque extrema, porque limitada. Mas ela tem
justo o intuito de refletir sobre um possível equilíbrio entre simbolismos extremos, arranjo que nos
possibilita amalgamar a teoria e a práxis, combinação tão propalada no menu teórico marxista.
Fico perplexo com o volume de teorias bizantinas que emanam a cada momento posterior ao
primeiro turno para dar conta de posições ideológicas emaranhadas por táticas e estratégias
políticas que muitas vezes se assemelham a receitas insossas e emboloradas pelo tempo,
ineficazes para aguçar o paladar da nossa refeição diária: praticar política enquanto socialistas
psolistas que somos. É uma tarefa pesada por esses dias.
Em tempos em que vivemos uma forte maré conservadora varrendo o mundo, especialmente no
Brasil dos últimos anos da era Lula, como explicar essa situação, tendo no comando do governo
um partido que propalava profunda transformação, justiça e igualdade social? Junte-se a isso, o
desconforto, maior ou menor, dependendo de cada qual, quanto à cumplicidade na construção e
fortalecimento do PT ao longo da sua história, situação da qual somente a juventude (bem mais
jovem) que aderiu ao PSOL depois do seu surgimento ou advinda de outros partidos de
esquerda, escapa.
Mea culpa, fundei e construí o PT ao longo de redondos dez anos – o bastante para me afastar
dele aos dez anos de vida. Certo dia presenciei um diálogo inesquecível na sede municipal do
partido em Porto Alegre, véspera do segundo turno Lula X Collor, novembro de 1989, portanto:
“Fulano (mui companheiro): Que embaixada você reivindicará?
Sicrano (mui companheiro): Paris, é claro, kkkkkkk (empinando o nariz)
Outro sicrano (mui companheiro): Sou mais Londres, faz mais meu estilo.
Outro sicrano (também mui companheiro): Quero ir para Buenos Aires, pois lá tem muita
parrijada e lindas noitadas de tango.”
Fecha a cortina.
Embora meio ressabiado com o diálogo que havia escutado vindo desses “altos dirigentes
partidários”, empenhei-me de corpo e alma na campanha Lulalá em 89, mas os sinais que eles
despertaram na minha pobre alma, foram suficientes para confirmar que logo depois, o apego aos
cargos e as benesses da estrutura burguesa, seriam fatais para atrair um sem número de
espertos militantes às cadeiras comissionadas na Assembléia Legislativa, na Câmara Municipal e
na Prefeitura de Porto Alegre.
Os tais “espertos”, não por acaso seriam os aparatchiks partidários, porta-vozes carimbados das
tendências internas e elocubradores de intermináveis textos teóricos distribuídos então a mano
militari entre a militância na forma de impressionantes calhamaços de papel. Parecia uma
competição de quanto maior, melhor. Poucos eram lidos, é claro, e, via de regra, muito menos
entendidos pela grande maioria, aspecto que parecia pouco importar, pois eram feitos mesmo
para impressionar o militante raso, aquele “de base”. Faziam o estilo “cabeça revolucionária” tão
presente na época, prolixa em texto, pobre em práxis.
Florianópolis, fevereiro de 2010
Há muito se fala sobre a forma como as Audiências P blicas em geral são mal conduzidas, não geram ganhos qualitativos e perderam sua importância no debate. Depois da Constituição de 88, dispositivos garantem a livre opinião e a transparência na condução da coisa pública, razões maiores para a existência de todas as Audiências Públicas. Acontece que, jamais houve um dispositivo legal que estabelecesse um roteiro básico obrigatório, que indicasse como deveria acontecer início, meio e fim desse importante momento da nossa vida democrática depois dos anos de ditadura militar, época em que reunião de três pessoas era subversão.
Praticamente em todas as áreas da gestão pública acontecem Audiências, e assim como começaram a proliferar, também começaram a evidenciar suas deficiências, mas acima de tudo, suas deformidades à luz de
uma padronização, resultado da ausência de uma mínima normatização formal. Assim, praticamente cada órgão público de licenciamento ambiental, por exemplo, estabelece a “sua forma” de fazer suas APs, aplicando
um “regimento interno” gestado normalmente em seus departamentos jurídicos. O método deve atender, porém, aos acordos políticos estabelecidos entre seus maiores dirigentes e as forças políticas e econômicas
que os sustentam nos cargos. Em suma, os acordos políticos “estabelecem” as regras do jogo nas APs.
É voz corrente nos movimentos sociais que as APs se transformaram, na maioria das vezes, em verdadeiros espetáculos teatrais, mera execução de uma obrigatoriedade legal que, na prática, não acarreta riscos aos
agentes públicos e aos projetos envolvidos, pois inócuas são para operar possíveis alterações no curso dos processos de análise para os licenciamentos de toda ordem, assim como a formulação/implantação de políticas
públicas nas diferentes esferas do Estado. Politicamente, apenas servem para legitimar a participação popular.
Na grande maioria dos casos a divulgação é pífia e ineficiente – que, em geral, se resume a um edital afixado em algum mural no órgão que a promove. Anúncios em rádios, chamadas em televisão, nem pensar. Também, em geral não há registros fidedignos que posteriormente possam ser utilizados pelos demais interessados no assunto: promotores públicos, entidades, justiça, e os demais órgãos públicos envolvidos. Poucas resultam em “atas”, e quando existem, são normalmente mal feitas, genéricas e, na maioria dos casos, omissas em
questões importantes, cheias de erros – até mesmo factuais, inconclusivas, entre outras características que, somadas, conotam imenso descaso para com aquilo que deveria ser um momento importante na análise dos
processos: a opinião do povo sobre o tema em pauta. “Povo” leia-se: instituições acadêmicas e especialistas; ONGs atuantes na área; apresentação de estudos já realizados sobre o tema; o morador local; etc...
Mas um aspecto que mais chama atenção nas APs de forma geral, é que seus regimentos internos, quando existem, impedem uma manifestação efetiva e autêntica por parte da sociedade: impõe todo tipo de armadilha
regimental para cercear a palavra à população, privilegiando os empreendedores, os quais, via de regra,dispõe de espaço quase ilimitado para expor seus “produtos”, ao passo que às pessoas da comunidade, é dado
um tempo exíguo, normalmente tão restrito, que sequer conseguem estabelecer um debate condizente com esse nome. Proíbe-se, entre outras coisas, o repasse de tempo de intervenção de uma pessoa para outra, o que limita a exposição de valiosos argumentos; estabelece-se tempo limitadíssimo de falação às pessoas; proíbe-se projeção de material ilustrativo em plena era digital; inventa-se uma pausa em meio aos trabalhos para esvaziar o plenário. As imposições estabelecidas por estes “regimentos internos” acabam deformando de
tal forma o debate que, via de regra, as discussões em pauta acabam se limitando às superficialidades – a forma de restringir uma boa compreensão por parte do público participante. É a pantomima que reina.
Urge que as APs, em todas as esferas, sejam regulamentadas à luz dos atuais direitos de cidadania, impondo uma regra geral aos órgãos e instituições públicas, pois, acima de tudo, é o interesse público que está em
questão e deve ser privilegiado, e não os interesses privados envolvidos em suas pautas. Além de exigir
adequada divulgação do evento, e prever a possibilidade, inclusive, de continuidade da AP em outro momento,
caso ela não esgote o assunto. Também deveria exigir o registro fidedigno das opiniões e posições externadas,para que possam ser levadas em conta pelos agentes públicos em suas análises processuais, e eventualmente
até mesmo acolher alguma conclusão gerada na “AUDIÊNCIA”, fator que resgataria seu verdadeiro sentido.
O que não pode continuar é esse “verdadeiro circo”, um faz de conta – mera “ANUÊNCIA”, a que todos nós
somos submetidos todos os dias: APs de fachada para cumprimento formal da exigência legal; manifesto
privilégio aos empreendedores envolvidos nos projetos e solene desconsideração por tudo que as comunidades
aportam de conhecimento e posições amadurecidas em seus próprios foros de discussão autônomos do
Estado. Esta, aliás, condição sine qua non para que haja verdadeira democracia participativa – permitir a
explicitação (e não a supressão) dos conflitos existentes e sua melhor solução em vista o interesse público
envolvido. Por tudo isso, fica claro que “AUDIÊNCIA NÃO É ANUÊNCIA!”.